terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Sempre


Sempre.

Ao contrário do que muitos pensam, não é o antônimo de nunca. O antônimo de nunca é o talvez.
O sempre é absoluto.
Tão absoluto que pode-se imaginá-lo impossível. No mínimo, improvável... Como unicórnios, atlântidas, eldorados ou a honestidade de algum político.
O sempre é o pote de ouro no fim do arco-íris.
Gerações inteiras de poetas, músicos bêbados, escritores presunçosos e dramaturgos tentaram aprisioná-lo em suas páginas, acordes e cenários.
Mas o sempre sempre escapa, foge entrelinhas, vira formiga e se esconde nos desvãos de atores desmemoriados, se camufla brilhantemente em meio aos cabelos encaracolados das cucas maravilhosas e se perde nos pensamentos... ops, já ouvi isso em algum lugar...
Sei que não existe o meu sempre, o seu sempre ou o sempre do vendedor de picolés do centro da cidade.
O nunca, esse sim... safadinho, se transmuta em daqui-a-poucos, ou em já-jás sem vergonhas, sempre bailando ao sabor das nossas conveniências diárias... Quem nunca prometeu que atire a primeira pedra: “Nunca mais vou beber de novo”, “Nunca vou te abandonar numa briga”, “Nunca contarei a ninguém o que você fez”, “Nunca olharei pra bunda de nenhuma outra mulher”...
Já o sempre é coisa tão séria que quase ninguém tem a coragem de usá-lo sem pensar muito bem nas consequências...
Quebrar uma negativa não parece tão sério quanto quebrar uma promessa! Será por causa da matemática? (Lembram? Menos com menos dá mais!)
Por isso, continuo dizendo sempre às coisas que já disse...
Sempre estarei por aqui, escrevendo, compondo, amando, falando besteiras, rindo à toa, sendo quem sou (e apenas quem sou) e tentando ser feliz...
Menos quando meu intelecto não ocupar mais nesse mundinho doido! Daí minhas moléculas vagarão, obedecendo fielmente à Lei da Conservação da Matéria do meu amigo Tôim Lavoisier!

Sempre!

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

IMOBILIÁRIA

Quando eu era criança, me lembro que achavam o máximo casas grandes, com amplas varandas, salas enormes, quartos gigantescos e muito espaço pro ar circular...
As crianças se divertiam, com seus corredores de 2 metros de largura por 20 de comprimento... a poeira não parava quieta, sempre com um danado de um vento a empurrá-la pra lá e pra cá... e o sol entrava sem ser convidado pelas absurdas janelas, que de tão grandes precisavam de pelo menos duas pessoas pra empurrarem as pesadas folhas de madeira.
Hoje o mundo é extremamente prático, e o chique é ter um apartamento super enxuto, com aproveitamento pleno de espaços, ar condicionado, iluminação artificial e comandos de voz. Inteligentes, quase não precisam da gente, apagando as luzes ao nascer do sol e avisando com um elegante bipe quando a temperatura ameaça o equilíbrio interno...

E não é que hoje, como antigamente,
as casas são mais ou menos como o coração da gente?

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

INTERLÚDIO

Mãe e filha andavam no corredor da escolinha...
Ligadas pelos laços invisíveis que unem pais e filhos... as mãos dadas, os andares coincidentes, os olhares voltados pro horizonte... olhar de criança, dona do mundo... olhar de mulher adulta, preocupada com as coisas de adultos...
No rosto de uma, o sorriso incondicional que só as crianças podem ter... sorriso feito de futuro, de chocolate, de ciranda cirandinha, de boneca barbie e festa de aniversário, de arco-íris e borboletas (que são quase a mesma coisa)...
No rosto da outra, um sorriso cansado... sorriso feito das mesmas coisas, porém um pouco gasto pelo tempo, pela passagem dos dias e suas dificuldades...
Embaixo do braço da baixinha, o livro de historinhas... Tempos difíceis, de bruxas e dragões... Mas tão bom aqueles tempos, o príncipe sempre salvava a mocinha, o caçador pega o lobo mau e todo mundo – claro! – vai ser feliz pra sempre!
Em câmera lenta, ela dá um beijo na mãe e entra... Ela coloca o livrinho embaixo do braço e escolhe um banquinho no cantinho da sala. Fica só olhando a meninada... uns chorando... outros pulando... outro no colo da tia... e ela toda calminha... com o semblante tão bom...
A mãe fica com o coração partido... sem porquê, afinal, sua menininha estava feliz...
Talvez ela quisesse se sentar naquele cantinho, e brincar de balanço, desenhar com o lápis de cor azul uma nova realidade, pedir colo pra professora e dormir, no fim da aula, esperando alguém chegar pra lhe buscar... Mas o trabalho espera, não pode chegar atrasada.
Vira as costas, e a máquina-segunda-feira começa a funcionar...

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

ARMÚNCULO

A vislamia o pegou de surpresa! Nunca, em todos esse anos, imaginou que poderiam surgir tais patófias entre seus próprios envíceros! Nunca pensara que algum imprivilho tão rustórico se imiscuísse em sua vida, sempre calma e expermectória. Mas tudo bem! Quem é mesmérico não se incomoda com alicerapipes... Mas, a partir daquele dia, nenhum incéretro jamais pisou novamente em suas múvulas!

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Afinal

Noite.
Música.
Suor.
Combinação perigosíssima.
Os cabelos dançavam sobre a superfície diáfana da nuca. Ele, com as mãos em sua cintura e colando-se levemente aos quadris que se movimentavam docemente.
Levemente embriagados. O suficiente para que sentissem que nada mais era importante. O suficiente para cometerem a loucura que há tanto tempo haviam evitado.

sábado, 22 de novembro de 2008

Aniversário

Era bom estar de novo ali.
Muito tempo havia se passado, é certo. Alguns anos. Mas nada havia se esmaecido em sua memória.
A um canto da sala, a cadeira de balanço. Onde haviam feito amor pela última vez. Podia se lembrar de cada detalhe. Fotografia. O sorriso maravilhoso no rosto dele enquanto crescia em suas mãos. Não. Não fotografia, mas filme. O movimento ritmado a princípio, depois desconexo, de sua dureza já completa entre seus dois montes de neve. Brancos. Como a neve. Quentes. Como o verão derretendo calotas polares. Não. Não filme, mas a vida. A vida jorrando de dentro dele. A fluidez atingindo seus cabelos, seus olhos, sua boca. Sentia ainda o gosto acre entre seus dentes. E enquanto ele se encolhia entre seus dedos, ela sentia-se agigantar. Senhora de seu homem, ele escorria por ela, percorrendo-a cada seu caminho, cada vão, cada desvão. Inundando-a. Preenchendo-a. Não mulher, mas deusa.
E agora tudo era ausência. E saudade. Ocupando todo o espaço vazio da escuridão.
Abriu a porta. O sol acabara de sair. Tépido, como naquela manhã. Caminhou até o pé de amora, onde haviam repousado. Dedos e lábios. Sujos e doces. Bocas experimentando dedos. Dedos experimentando onde quer que fosse.
Adentrou a estradinha que levava à praia. Tudo igual igual igual. Os mesmos grãos de areia se grudaram às solas de seus pés. O mesmo cheiro de coisa silvestre, o mesmo barulho de mar. Ali ela havia pedido um coração numa árvore. Ele dissera não. Uma árvore não é algo que se machuque. Hunf. Um coração também não.
Caminhou até a beira do mar. Estendeu as cadeiras uma ao lado da outra, exatamente como naquele dia. Verdade, podia se lembrar de cada detalhe. Não a vida, mas paixão. Ele do lado esquerdo. Ela do lado direito. À frente o horizonte. Não se falaram, não se tocaram. Mas nunca duas pessoas estiveram tão próximas. O silêncio de cada um estendeu-se em direção ao outro, preenhe de presença. Ultrapassando os ridículos limites da pele. Estendendo-se além de suas auras. Entrecruzando-se, misturando-se, tornando-os um. Clichê. Mas verdade.
Até que as mãos se tocaram de leve, e o mundo principiou a convergir em cores, sons, cheiros, sabores. Montanha-russa. Espetáculo. Picadeiro. Lentalentamente desacelerando, até que a areia, o sol, o mar voltassem aos seus lugares de origem. Calma. Paz.
Amor.
Uma lágrima caiu ao mar. Perdeu-se. Como ela. O mundo era muito grande sem ele. Muito fácil desaparecer.
O mesmo maiô, os mesmos óculos escuros, a mesma canção do vento. Só ela já não era mais a mesma. Caminhou até a água salgada, procurando por sua lágrima perdida. Queria de volta o sal que se fora. Em sua busca, bebeu toda a água do mar. Até que o encontrasse de novo, em algum lugar dentro dela.

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Ciúme

Maldito!
Pensa que é assim?
Vem, me tira da casa dos meus pais, me abusa, me lambuza e depois me troca por outra? Vagabundo! Isso é que não!
E aquela piranha? Acha que vai se safar tão facilmente? Pegando homem dos outros! Ha! Vai ter troco!
Amanhã mesmo vou entrar naquela casa! E vou rasgar um por um todos os lençóis. Vou tocar fogo no colchão. Não vai sobrar nada no ninho de amor dos dois pombinhos.
E eu vou ficar na porta vigiando. Se alguém quiser apagar o fogo, vai ter que me enfrentar primeiro. Rasgo na gilete quem vier!
A não ser que ele me queira como amante. Aí sim! Aí aquela cadela safada pode ficar com ele a vida inteira. O que eu quero não gasta não! Lavou, tá novo!

terça-feira, 26 de agosto de 2008

Noite

E essa saudade...
Um bloco, pesado, em minhas mãos.
Um bloco líquido e, no entanto, levemente sólido.
Que não cabe em minhas mãos, e se espalha por meu corpo. E que se espalha pelos meus olhos, e me cega. Se derrama em minha boca, e me sufoca. E envolve os meus braços, e me deixa assim, paralisado.

Quero fazer com que ela pare, mas não posso. E me mantenho dócil ao seu ataque.
Sentindo um prazer quase masoquista. Entregando-me ao amargo. Adivinhando dentro do acre o doce.

E amo a sua saudade quase tanto quanto amo a sua presença.

sábado, 19 de julho de 2008

Emprego

No RH:
"Moço, tem vaga hoje"?
"Senhor, ainda não. Assim que tivermos uma vaga, eu ligo no número que o senhor deixou no currículo".
Dia seguinte:
"Moço, a vaga apareceu"?
"Ainda não. Já disse que a gente avisa quando aparecer".
Todo dia, durante quinze dias ininterruptos:
"Moço, e a vaga"?
A mesma calça de brim surrada, o mesmo chapéu, a mesma camisa branca puída.
"O senhor sabe, tenho mulher e filho, a coisa tá preta. Tenho vergonha de acordar e olhar pra cara dos dois, sem saber se vai ter comida pro dia inteiro".
Cinquenta e poucos anos, mais da metade da vida vivida e nenhuma perspectiva.

Quatorze dias depois, aparece a vaga.
"Alô"... "É a mulher dele, a Joaquina"... "É da construtora? Meu vééééééiiiiiiiii, corre, hômi de Deus, pelo amor de Nossa Senhora, é da construtora"!
"Sim, meu filho, nossa-senhora-viiirgem-santíssima-quero-sim-tô-indo-praí-agora-segura-essa-vaga-pra-mim-hômi-de-Deus"!
Cinco minutos depois, ele aparece, todo esbaforido, de bicicleta emprestada e documentação completa na mão.
"Meu filho, é Deus quem mandou vocês pra estas bandas, Deus te guarde"!

Quatrocentos e quarenta reais por mês.

quinta-feira, 3 de julho de 2008

Ai

O ai é engraçado...
Curto, cortante, rasgando o ar!
Quando vem sozinho, já se sabe: é dor curta, coisa pouca... ferrão de abelha, picada de agulha, topada de dedo em pedra pontuda. Quase sempre vem depois um palavrão.
Em dupla, dito de forma meio suspirada, denota dorzinhas inocentes: alguém que não apareceu, uma carta que não veio, uma saudadezinha-bicho-do-pé.
Em trio, significa irritação, impaciência. Sinal fechado, leite derramado, fila que não anda.
Às vezes são ditos repetidamente. Dedo preso na porta, choque em tomada, pele em coisa quente. Costuma parar logo que cessa a causa.
Mas o ai é um bichinho covarde. Ele some quando a dor é grande.
As dores maiores, as dores de verdade, aquelas que abalam vagarosamente o coração e a mente, essas são quase sempre silenciosas. Dores de amor, de morte, de doença crônica não têm ais!
Elas apenas dóem, doídas, caladas. E não acabam nunca.
A única companhia que conseguem são as lágrimas mudas e resignadas.

terça-feira, 3 de junho de 2008

Estocolmo

Cinquenta e dois dias hoje.
Sem banho. Sem cortador de unha. Sem creme dental. Sem um pente sequer.
Comida, só duas vezes ao dia. Ao acordar, um café ralo e sem açúcar acompanhado de um pão duro sem manteiga. No meio da tarde, uma gosma feita sabe-se lá de quê. Água regrada. Escuro durante todo o tempo.
Nenhuma janela, nenhuma lâmpada. O mofo úmido brotando nas paredes e o cheiro de seus próprios excrementos se acumulando no buraco do canto da cela. Pelo barulho, já estava pra mais de meio.
Ninguém lhe dizia nada. Não sabia o que queriam. Rico, não era. Muito menos importante ou influente. Pra dizer a verdade, não valia o esforço.
Cinquenta e dois dias. Ou cinquenta e três. Ou cinquenta e um. Não sabia bem. Se baseava no barulho que faziam durante as trocas de turno. E no ronco do guarda que ficava à noite.
Pensara em se suicidar, mas não havia nada que pudesse utilizar. Chão de cimento, paredes de reboco, nem uma aresta ou farpa. Pede a Deus todos os dias pela sua morte. Mas Ele com certeza já se esqueceu de sua existência.
Amanhã vai botar seu plano improvisado em prática. Vai se jogar no buraco. De ponta. Deve ter uns quarenta centímetros de diâmetro. Assim será impossível se virar. Impossível se salvar. Vai morrer afogado na própria merda. Um destino merecido pra quem, como ele, foi um merda a vida inteira.
Só uma coisa lhe incomoda: não saber quem ordenou esse sequestro. A única pessoa que algum dia fez algo pensando nele. Que se dispôs a dispender tempo, dinheiro e neurônios com vistas à sua pessoa.
Queria ao menos saber seu nome. E o porquê.
E agradecer.

terça-feira, 6 de maio de 2008

Melancolia

Vista da janela do avião, a cidade não se parecia com a miríade de ruas e carros e pessoas a que estava acostumado. Sua superfície estendia-se perpendicularmente à estrada, como um rasgo no tecido verde da terra.
Algumas poucas nuvens alojaram-se confortavelmente em algum ponto entre seu olhar e as árvores lá embaixo. Pessoas não as viu, não o permitia a distância entre a barriga do aeroplano e as cabeças dos homenzitos no solo. Carros pôde identificar um ou outro, apressados pontos percorrendo retas e curvas no sentido longitudinal do mapa impresso no chão.
Não era exatamente grande sua cidade. Alguns poucos mil habitantes. Menos um agora. Não que fizesse diferença. O que é um em vinte mil? Mesmo que vinte mil seja pouco pra uma cidade, e o apenas um seja muito pra quem se vê obrigado a carregar a si mesmo desde o dia em que nasceu.
Agora tudo era apenas nuvens e céu, e seu olhar se perdeu no horizonte. Talvez voltasse, talvez não. Só não queria essas lágrimas que teimavam em surgir.

domingo, 6 de abril de 2008

Flerte

A vida, naquele momento carecendo de graça e sentido, encontrou-se no desenho daquele sorriso.
Invisíveis aos olhos de toda a gente, os olhares se encontraram. E desrespeitando a lei não escrita dos primeiros olhares, demoraram-se mais que o um-segundo protocolar. E foi ali que se perderam.
Talvez a distância exata entre os corpos naquele específico minuto, talvez a densidade do ar matutino ou a intensidade da solidão na pele de cada um. Talvez - quem sabe? - um instante a mais ou a menos não os encontrassem naquela determinada posição, naquele ângulo de visão, naquela particualr incidência da luz. Talvez. Mas foi assim que aconteceu.
Ele estava de passagem. Não se viram nunca mais. Mas há um certo momento em que as memórias se encontram, mesmo que eles pensem que estão sozinhos. Não estão. Nunca mais.

sexta-feira, 21 de março de 2008

Check-in

Na saleta de espera do aeroporto, bagagens se acumulavam. Bagagens que ninguém reclamava. Se amontoavam pelos cantos, à espera. As mais antigas com sua camada de poeira. As mais novas com o brilho desconfiado dos sorrisos incompletos.
A moça dos cabelos azuis era a única no ambiente. E examinava minuciosamente cada uma das malas. Procurava por cicatrizes, defeitos de nascença, doenças degenerativas e males congênitos.
Nunca se dava por satisfeita. Dia após dia, de cidade em cidade.
Naquela manhã, um sorriso lhe corou a face. Escolheu uma que lhe pareceu adequada. Não era pesada. Feia. Mas coube perfeitamente em seu delicado dia-a-dia.
Agora é feliz, e os aeroportos fecharam-se, devido à cerração.

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Reflexão

Eu disse a ele!
Não vem com essa história não! Nada é tão definitivo que não possa ser desfeito. Basta a gente querer. E mais que isso, tomar uma atitude. Umazinha só!
E ele me veio novamente com aquele papo de filho-responsabilidade-pai-mãe-sociedade-quando-der-eu-resolvo...
Mas na hora de meter a vara na minha bocetinha ele esquece isso tudo, né???
Sei!

domingo, 27 de janeiro de 2008

Domingo

Se ao menos falassem, as gotas de chuva.
Alguém me disse uma vez que conversam, as danadinhas. Alguém cheio de poesia. Não me lembro quem. Mas eu nunca entendi.
Deve ser porque sou amigo do Sol. Não sei a linguagem da chuva.
Uma amiga me disse uma vez que só entende a liguagem da Lua. Ah, a Lua sabe das coisas. A lua tem uma conversa toda feita de silêncios. Ela sabe, a velha Lua, que essa é a melhor música pros namorados.

Enquanto isso, chovo raios de sol enluarados.











http://moacircaetano.zip.net

terça-feira, 22 de janeiro de 2008

Feriado

Finalmente!
Seu sonho enfim se realizava. Uma praia de nudismo. Sonho de menina, desde a longínqua cidadezinha do interior pernambucano onde nascera.
Seu pai não aprovara. "Coisa de mulher vagabunda". Sua mãe morrera de vontade de acompanhá-la. E lá estava ela. O nível de curiosidade e excitação estava a mil.
...
Quinze minutos depois, só vontade de ir embora. Tudo muito normal, exceto o fato de estarem todos nus.

E o mais estranho é que ninguém ali se mostrava de verdade. Todos escondidos embaixo de sua nudez.

terça-feira, 11 de dezembro de 2007

Anestesia

Sabe essa foto, doutor? Sou eu na minha adolescência. Quando eu tinha 17 anos na longínqua cidade de Butantã da Serra, no Maranhão. Eu comia calango e bebia água do açude. Tempos difíceis aqueles.
Esse terno que eu estou vestindo na foto custou o olho direito da minha irmã mais nova, Jurelina. Hoje, com nossa situação melhor, comprei um olho de vidro pra ela. Ficou bonita a bichinha, arrumou até marido depois do olho novo.
Mas valeu a pena o sacrifíco, tenho até hoje o terno, que uso em ocasiões especiais. Usei mesmo anteontem, no enterro do meu primo Teobaldo, Deus o tenha. Famoso e querido Teobaldo, também conhecido como Come-Piolho. Cabra bom aquele. Comia os piolhos dele e os meus, isso é que era amigo.
Uma certa vez Teobaldo se encontrou com Jurelina e se encantou, visse? Olho no olho (ele era cego do olho direito e ela só tinha o esquerdo). Mão na mão. Quase que vira coisa na coisa. Mas antes disso chegou meu pai e meteu o pé no peito do sem-vergonha. Teobaldo quase morreu sem fôlego. Tempo bom aquele.
Hoje vivo vida de rei. DVD, microondas e TV 29 polegadas. Um Monza 91. E uma mulher muito da ajeitada. Mas sempre que eu olho essa foto, seu doutor, me dá vontade de chorar. Porque dentro de mim ainda mora aquele molequinho cabeçudo das pernas finas da Rua Paraíso em Butantã da Serra.
Agora pode arrancar o siso, doutor. A bochecha já tá dormente.

sábado, 17 de novembro de 2007

Rodapé

Sentou-se em sua cama.
Pousou a cabeça entre as mãos e chorou. Como nunca havia chorado antes. Como nunca nesses trinta e tantos anos de vida.
A decadência começara pouco a pouco. Quando nascera. Acreditava piamente que o auge da existência de um ser humano era o nascimento. Daí pra frente, tudo o mais é morte.
A sua se acentuara há dez anos atrás, quando sua mulher o abandonara. Sem explicações. Também inexplicavelmente, seu irmão mais velho desaparecera. Exatamente no mesmo dia. As más línguas se deliciaram.
A bebedeira foi inevitável. Anos e anos. Um dia seu pai veio e levou seu filho embora. Ele não se importou. Os amigos, já escassos, se afastaram. Não suportavam mais suas crises histéricas de auto-piedade. Nem sua insuportável tendência de desaparecer na hora de pagar a conta.
As mulheres, que a princípio se encantavam com seu jeito foda-se de ser, logo descobriram ser um embuste. Ele não dizia foda-se ao mundo... dizia foda-se a si mesmo. E a quem estava ao seu lado.
A única coisa que lhe restara era seu emprego. Escritor de obituários.
Mas hoje estava sentado em sua cama, chorando. Em suas mãos, um nome. Causa mortis: suicídio. E ele não conseguia escrever a porra do obituário. Depois de vinte anos fazendo a mesma merda, não conseguia escrever a porra do obituário.
Olhou novamente o papel através das lágrimas.
Manoel Batista de Araújo.
Seu nome de batismo.

sábado, 3 de novembro de 2007

Al Dente

A panela no fogo esperava.
Azeite de oliva, alho, sal e pimenta. Lágrimas de cebola ainda em seus olhos. Lágrimas não faltavam, desde que ele se fora.
O cheiro invadiu cada espaço vazio do apartamento. Imiscuiu-se nas fibras dos móveis, na espuma dos travesseiros, nos póros de seu corpo. O cheiro de comida. O cheiro dele.
Movimentos circulares, misturando aos poucos os pedaços de alho à textura uniforme e suave do sal. Movimentos como o de seus quadris, misturando-se à pele morena e suada que nunca mais tocaria.
Água. A temperatura cai bruscamente. No choque térmico, milhões de moléculas se quebram, misturando tempero, água e óleo. O que não se mistura passa a viver intimamente ligado, desconhecendo suas diferenças. Até que venha algo roubar-lhes a proximidade. Derramou na panela o arroz. Outra mulher. O que ela sempre temeu.
Alquimia, química... Tudo muito delicado. Equilíbrio instável. Um pouco a mais de tempero, um pouco menos de carinho. Rompe-se o elo. O delicioso torna-se intragável.
Senta-se no chão e chora. De novo. O cheiro de queimado não mais importa. Deixa a chama se apagar sozinha. Sem amor, sem jantar.

quinta-feira, 11 de outubro de 2007

Espera

O paraíso ali estava, em forma de alvo sorriso nu...
Um campo de trigo vicejava sobre a neve morna.
Um sorriso de um milhão de dentes iluminava a penumbra, fazendo o tempo parar por alguns segundos, antes de acelerar rumo à hora limite.
Ele, também nu, se calou. Não havia palavras possíveis ante o inimaginável. A impossibilidade do real o preocupou, mas não pôde evitar no pensamento a palavra felicidade.
Quis mergulhar em sua fonte, banhar-se em sua cachoeira, beber e comer e gozar de cada gota. Mas não hoje. Não ainda.
Agora espera. Faz com que a ausência se torne saudade. E sonha desperto.

segunda-feira, 1 de outubro de 2007

Jolene (stolen by cake)

Jolene acordou. Pela 6300ª vez em sua vida. E ela nem mesmo sabia como pronunciar esse ordinal. Destrancou seu quarto. E sua vida. Recostou-se à veneziana de madeira, fina como o tecido de sua existência. Como o tecido de qualquer existência. O calor do sol matutino atravessou a camada melíflua de camisola e tocou sua pele ainda adormecida. Sentiu-se feliz, como em todas as 6300 manhãs de sua vida.
Sentou-se em frente ao espelho. Seus longos cabelos negros espalhavam-se em um fluxo contínuo, deslizando em direção ao centro da Terra. Gravidade. Acariciou-os lentamente. Toda a paciência do mundo. Nenhum pente jamais os tocara. Apenas seus dedos dançavam em seu piso macio.
Despiu-se da toalha úmida. Dobrou-a cuidadosamente, carinho.
E eu quero jogá-la em sua cama ainda desarrumada. Quero esculpir seu rosto em chumbo. E toda vez que meu rosto encontra seus cabelos, o cheiro. Creme rinse e tabaco. Sempre ali, o cheiro. Sempre em mim, o cheiro.
Jolene ouviu o ronco irregular de seu pai. E a porta aberta esperando. E ela sabia... havia algo mais em algum lugar...
Jolene ouviu o canto da floresta. O canto das coisas da floresta. Abriu a porta a pedido da brisa. Calmamente. Adentrou a noite.
E eu quero lançá-la ao espaço. A quero foguete. Nave. Quero fazer tudo o que for preciso. Pois toda vez que meu rosto encontra seus cabelos, o cheiro. Creme rinse e tabaco. Sempre ali, o cheiro. Sempre em mim, o cheiro.

sábado, 22 de setembro de 2007

Conto Navegação-Labirinto

moacircaetano & czarina

Capítulo 1

Capítulo 2

3.

Não ouvia o que ele dizia. Apenas via o matraquear, o abre-fecha daquela boca malcheirosa, os respingos de saliva viajando até alcançarem o tampo de vidro. Uma névoa me cobria os ouvidos, impedindo-me de entender ao menos uma simples palavra.
Enquanto ele falava, eu só conseguia ouvir os gemidos da vagabunda da Suzana. Só podia ouvir o barulho molhado do meu pau se enfiando em cada orifício daquela vadia.
Tentei deixá-la dezenas de vezes, mas era impossível. Eu era viciado naquele cheiro. O mesmo cheiro que invadiu minhas narinas enquanto o idiota vociferava o mais alto possível, de forma que seus berros ultrapassassem a fina camada de divisória que nos separava do restante do escritório. Olhos curiosos e sádicos perfuravam minhas costas.
Saí do transe em que me encontrava a tempo de ouvir a frase final: “Hoje você vai ficar até mais tarde consertando a cagada que você fez, seu merda!”.
Saí no corredor e, como era usual, todos fingiam que nada havia acontecido. Parei na copa de novo. Fodido; fodido e meio! Bebi mais um pouquinho do café de Dona Isidora. O gosto de sangue em minha boca desapareceu por alguns segundos, mas logo voltou.
Sentei-me em meu cubículo. Um email da vagabunda: “Quero que você me coma na cama do César hoje. O corno me ligou e disse que vai ficar até tarde vigiando um merdinha qualquer no escritório”.
Imediatamente peguei meu casaco sem me despedir de ninguém e saí rua afora.
Virando a rua, entrei na padaria Pão D’ouro, ruim, mas com ótimos preços, o que justifica o apelido aqui no bairro, Pão D’uro. Sentei no balcão, tirei os óculos escuros e pedi uma média e um queijo quente. Foi só quando o lanche chegou que me ocorreu que não estava com fome. Lembrei do pedaço de pizza que comi antes de sair. A pizza do dia anterior, pedida com destino certo: ser devorada durante o filme de ação que seria exibido no Tela Quente.
Mal comera o primeiro pedaço, o telefone tocou.


Epílogo

sábado, 15 de setembro de 2007

Última Vez

Seria a última vez. As crises de consciência não o deixavam dormir.
Seria a última vez naquela mesma cama, no sempre mesmo quarto, no mesmo sempre sujo desejo...
Ontem acordou e olhou sua filha. Treze anos. E pela primeira vez na vida, o desejo por ela nasceu dentro dele. Se horrorizou. Mas ainda assim ficou ali por uns quinze minutos. Até que a luz do dia irrompeu o ar, tornando perigosa sua movimentação incessante. Esvaziou seu corpo. Sua alma foi junto.
Naquele momento soube que teria que parar com tudo aquilo. Parar com as tardes furtivas, com o segundo andar escondido entre os becos, com os presentes cor-de-rosa e os duzentos reais a cada semana. Parar definitivamente com o medo de ser pêgo, o medo da justiça dos homens e da justiça de Deus. Esta seria a última vez, jurou a si mesmo.
Subiu as escadas. Seu pau a ponto de estourar. Podia quase sentir o cheiro de pele e suor. Cheiro de juventude, de inocência. Cheiro de infância.
Abriu a porta. No contraluz, não distinguia rosto ou cor. Viu apenas a silhueta recortada... e ouviu o suspiro da menina deitada na cama. Fechou a porta e apagou a luz. Escuridão total. Assim a última não teria um rosto, mas sim o rosto de todas as que ali havia encontrado.
Já nu, encostou suas mãos no corpo trêmulo. Ao seu toque, ela desfaleceu. Desesperado, acendeu a luz.
Sem sentidos, sua filha se estendia entre os lençóis vagabundos.


*

Pra Carol.

quarta-feira, 12 de setembro de 2007

Ontem

Equilibrava-se diariamente entre a tesão e a razão.
Olhava saias balouçantes, bocas e pernas, bundas e seios, exuberâncias e singelezas em suas mais diversas acepções.
Morenas, loiras, ruivas, negras. Bonitas, feias, gordas e magras. Meninas e coroas, alunas e prefessoras.
Se consideraria um tarado, não fosse a carga de negatividade implícita em tal palavra. Apaixonado, isso sim. Apaixonado por todas as mulheres do mundo.
Alguns, irônicos, diriam que quem ama a todas não ama a nenhuma. Nada poderia estar mais distante da verdade. Amava a todas, e amava em todas aquele mínimo quase imperceptível que faz de cada uma delas especial em meio a tantas. Detalhes ínfimos, que apenas ele enxergava. Um meneio de cabeça, uma respiração hesitante, uma palavra mal colocada, um sorriso entrecortante. Aquele único momento em que eram singularmente únicas.
Ontem morreu.
Carregava consigo todas as lembranças de cada mulher com quem cruzara.
A essência de cada uma delas dele se desprendeu, e uniram-se em uma brisa suave, que passeou por cada calçada da cidade antes de desaparecer em direção ao espaço. E, por um segundo, todas elas foram felizes, sem saber exatamente o porquê.

quinta-feira, 16 de agosto de 2007

Coisa de Homem

Mulher de amigo meu pra mim é homem!
Máxima que aprendi com meu pai. Com mulher de amigo não se mexe. Questão de honra. Fale mal dos outros, seja mal-educado, não respeite os mais velhos, mate, roube, não ame a Deus sobre todas as coisas, mas... nunca, nunca deseje a mulher de um amigo.
Nunca fiz isso em toda minha vida. Nunca. Quando um amigo me apresenta sua namorada ou esposa, pra mim é como se ela fosse um macho barbudo. Pensar em algo íntimo me causa repugnância.
Mesmo quando é ela. Mesmo quando é aquela desgraçada. Mesmo quando me lembro daqueles olhos negros profundos e perturbadores. Mesmo quando vejo em minha frente aquela boca úmida, repelta de desejos e promessas proibidas. Mesmo quando ela surge com aquele perfume e faz com que todo o resto da existência não seja mais que um simples sopro. Mesmo quando ela diz meu nome com aquela voz que se prolonga meus sonhos adentro. Mesmo quando ela passa e me viro pra observar seu caminhar em movimentos bamboleantes.
Juro, nem olho pra mulher de amigo meu! Mesmo quando é aquela vagabunda. Que me diz com olhos doces coisas que uma boca nunca usaria dizer. Que me nocauteia com seu silêncio cheio de insinuações e convites. Que não olha pra mim enquanto sinto sua atração por mim me queimando em brasas. Nunca, nunca a desejei. Nem mesmo a olhei, juro por Deus.
É...
Mulher de amigo meu pra mim é homem! E nessas horas eu sou viado!

quarta-feira, 1 de agosto de 2007

Maria Maria

Ave Maria, Gratia Plena, Dominus Tecum.
Nascera Maria. Nascera mulher. Quando deu seu primeiro grito nesse mundo, o médico decretou: "É uma menina"!
Sentença cruel essa...
Melhor dizer logo em palavras claras: "Sua filha sofrerá a vida inteira, será sempre mal-remunerada, sofrerá preconceitos, será menosprezada, muitas vezes ridicularizada e ainda assim terá uma missão dura e inglória: perpetuar a espécie humana através da dor e da memória".

Benedicta tu in mulieribus et benedictus fructus ventris tui, Iesus.
Crescera em uma favela imunda, lutando contra todo tipo de adversidade: pai bêbado, mãe ausente, irmão bandido, tios... bem, melhor esquecer!
Aos quinze, não havia outra alternativa: ou se prostituía ou virava mulher de traficante. O que no fundo era a mesma coisa. Preferiu ser puta de um homem só. Sem saber se amanhã ele estaria lá. Sem saber se amanhã ela estaria lá.
Sem querer, pôs uma criança no mundo. Mais um. Pra morrer ou virar bandido.

Sancta Maria, Mater Dei, ora pro nobis peccatoribus...
Rezara dia e noite pra algum milagre acontecer. Pra seu filho vingar. Pra seu homem não morrer. Mas Deus não ouve. Deus é surdo. Deus não existe.

...nunc, et in hora mortis nostrae.
Aos vinte, não tinha mais marido nem filho. Nem vida que valesse a pena. Se entregou ao meretrício. Sem camisinha e sem esperança. Aos vinte e um, já não era mais Maria. Era poeira vagando entre os jardins. Enfim encontrara sua paz.

Amen.

sábado, 14 de julho de 2007

Convite

Hora de soprar as velinhas!
Não escrevera um livro. O que havia de si espalhado pelo mundo renderia uns vinte, ou mesmo mais... mas nunca teve a coragem ou a iniciativa.
Não plantara nem uma árvore. Nem mesmo o feijãozinho dentro do vidro de maionese.
Filhos? Ha!
Não restaria absolutamente nada. Talvez seu nome em um obituário, que duraria enquanto o papel não se desfizesse em pó.
Havia a memória dos que o amavam. Mas a memória, todos sabem, é coisa volátil, volúvel. Bastaria um novo amor, um novo filho, um novo amigo... E mesmo o tecido humano, guardião das memórias boas e más, tem seu prazo de validade. Curto, por sinal.
Por isso mesmo não iria sozinho. Quem pode saber como é a morte? Talvez seja um vagão sem portas e sem destino. Quem sabe um trem que vague por todo o sempre...?
Levaria todos os que ama consigo. E viveriam todos em festa, bailando e bebendo pelos trilhos da eternidade.
Seu aniversário, a data perfeita. Soprou a velinha.
Da cozinha, veio o som da explosão.

segunda-feira, 9 de julho de 2007

Remake

Todos os dias o mesmo espetáculo.
Nobre espectador deitado em sua cama. Assistia a mesma peça pela milésima vez. Uma só personagem. A sempre mesma atriz. A parede branca, palco, iluminada pela luz difusa da tarde. Tarde que morria pelas fretas da veneziana semi-aberta. O palco esperava a estrela. O público-ele esperava a estrela.
Podia ouvir o som das milhares de gotas de água em fuga pelo ar. Fechando os olhos, podia vê-las precipitando-se ferozmente pela pele alva... límpida... lúdica. Soou em sua cabea o imaginário sinal de um minuto. Podia ouvir a maciez da toalha passeando pelos pêlos... suavemente... um sussurro... um cicio... um murmúrio intermitente.
Sinal de trinta segundos.
As pernas movimentam-se pela parede branca. Tela de cinema. Cortina. Palco. Nas costas, ainda algumas gotas seguiam o caminho delineado pela espinha. Tortuoso, desejado, delicioso caminho. Os cabelos negros derramavam-se, ondas sobre o branco. A brisa atrevida causava milimétricos arrepios, realçados pela tênue luz de um morredouro sol.
Os seios (Fuji, Andes, Everest!) desafiavam-no a 105 impossíveis graus. Seios lanças. Curare. Cicuta. Os olhos descuidados vagavam pelo espelho, levemente preocupados com sabe-se lá o quê.
Como sempre, ela nem o via... A nobre cegueira do contraste entre a luz dos holofotes e o escuro da platéia.
De repente, fim do espetáculo. As cortinas se fecham na forma de um vestido preto... fendas... decotes... promessas.
Ele continuará ali, pelas próximas vinte e quatro horas. Estático. Imóvel, aguardando a próxima sessão. Não sente fome ou frio ou sede. Não se cansa nem se exaspera.
Vinda do alto, uma voz lhe chama. Banhada de luz. Banhada de paz. Como no dia do acidente. Pela milésima vez nesses últimos três anos. Pela milésima vez ele ignora.
Ali é seu lugar. Nessa cama. Nesse quarto. Em frente a essa parede. Em frente ao seu passado, que não mais voltará. Em frente ao seu futuro, que nunca existirá...

quinta-feira, 28 de junho de 2007

UNFAIRY TALE

Tinha nojo de homens.
Não que não gostasse... gostava... e muito! Gostava do jogo de sedução masculino. Adorava a mente infantil dos homens. Gostava da agitação suada de seus movimentos. De sua necessidade de aceitação. De sua sede de poder. E de sua quase sempre inabilidade com os sentimentos mais profundos.
Mas simplesmente tinha nojo!
Não, não era lésbica...
Não lhe agradava o toque macio da pele feminina, nem a clarividência tão típica das mulheres. Não sonhava com os beijos e abraços de bocas mulherescas. Definitivamente não era lésbica.
E por ter nojo de homem - e não desejar de maneira alguma uma mulher - vivia sozinha.
Nunca namorara. Nunca trocara carinhos de adolescente. E assim tinha aprendido a viver. Como alguém a quem tivessem extirpado as amígdalas, ou o apêndice. Na verdade era um pouco mais desagradável... como se tivesse nascido sem dentes! Isso! Péssimo, mas... acostuma-se.
Um dia se apaixonou. O homem perfeito! Poesias, flores e flertes. Abria a porta do carro. Ligava todos os dias. Olhava-a com um olhar infinito de promessas e desejos. Mas tudo na medida certa. Nada ali sobrava ou faltava. Nunca se excedia. Nunca se esquecia.Paciente. Podia esperar por horas numa fila, e ainda assim exibir um sorriso apaixonado. Amigo. Companheiro. E na cama, um furacão!
Primeira vez. Primeiro beijo. Primeiro toque. Estremeceu. Um abraço... seu estômago embrulhou-se. Os lábios se roçaram. Vomitou.
Ele ainda entendeu, apesar do desagradável da situação. Disse que lhe desejava sorte. Disse que estaria sempre à espera. Disse um respeitoso "Eu te amo". E ela chorou.
Ao chegar em casa, cortou os pulsos. E morreu pensando nele.

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